A Educação Física mudou
para melhor. Agora, ela é de todos
A metodologia e os objetivos de aprendizagem das
aulas da disciplina mudaram nas últimas décadas. Sai o foco nos alunos mais
hábeis, entra a preocupação com a democratização. Ser solidário passou a ser
tão importante quanto jogar bem um esporte. Leia mais no artigo de Marcelo
Jabu, educador, criador e construtor de brinquedos, marceneiro, consultor de
Programas Sociais Educativos e formador de professores
1. No passado, aulas de Educação Física
privilegiavam os alunos mais habilidosos
Marcelo Barros Jabu, especialista
em Educação Física
Este artigo é dedicado ao Prof. Beozzo, ao Prof.
Simão, ao Vicentini e ao Prof. Odilon, todos eles professores de Educação
Física do Grupo Escolar e Ginásio Experimental "Dr. Edmundo de
Carvalho" no bairro da Lapa, em São Paulo, nos anos 60 e 70.
Recentemente passei a frequentar um desses grupos de relacionamento via Internet que promovem o encontro, melhor seria dizer reencontro, de pessoas que estudaram na mesma escola, frequentaram a mesma faculdade ou moraram na mesma rua. As pessoas vão retirando do baú fotos antigas e vão postando suas memórias no Facebook, compartilhando assim suas lembranças e saudades da infância e da adolescência.
Recentemente passei a frequentar um desses grupos de relacionamento via Internet que promovem o encontro, melhor seria dizer reencontro, de pessoas que estudaram na mesma escola, frequentaram a mesma faculdade ou moraram na mesma rua. As pessoas vão retirando do baú fotos antigas e vão postando suas memórias no Facebook, compartilhando assim suas lembranças e saudades da infância e da adolescência.
Navegando num desses grupos, encontrei algumas
fotos que retratavam nossas aulas de Educação Física no famoso "Experimental
da Lapa". Essas imagens me transportaram para um tempo bem remoto e
provocaram algumas reflexões que gostaria de partilhar neste artigo. Em
síntese, o que pude reconstruir ao relembrar aquelas aulas foi o seguinte:
- Usávamos uniforme que consistia num tênis Conga
azul-marinho com cadarços brancos, meias ¾ brancas, um calção meio balofo de
brim vermelho e uma camiseta regata branca. Esse era o uniforme dos meninos. As
meninas usavam uma espécie de saia pregueada ou algo assim.
- As aulas eram separadas para meninos e meninas.
Os professores só podiam ministrar aulas para turmas masculinas. Já as
professoras de Educação Física podiam atuar com turmas masculinas e femininas.
- Fazíamos "ginástica formativa" (flexões
de braço, abdominais, exercícios na barra fixa) como aquecimento e corríamos um
tempo em volta da quadra.
- As aulas consistiam em exercícios técnicos de
fundamentos esportivos, geralmente das modalidades de handebol, basquete, vôlei
e futebol de salão (nome da época para o futsal). E o voleibol era considerado
esporte de "maricas".
- Se a gente não fizesse muita bagunça durante a
aula, o professor deixava a gente "jogar de verdade" o tal esporte
nos últimos 10 minutos da aula.
- Nos dias de chuva, dávamos cambalhotas em uns
colchões de lona verde, plantávamos bananeiras e saltávamos sobre um plinto
(aparelho destinado à execução de saltos) meio quebrado.
- Os melhores em cada modalidade eram escolhidos
para participar de treinos específicos no contraturno escolar e compor equipes
para representar a escola nos campeonatos colegiais.
- As meninas ensaiavam exaustivamente sequências
intermináveis de ginástica sueca e participavam dos desfiles de 7 de setembro
no Estádio do Pacaembu.
Analisando sob a ótica atual, é possível dizer que
a Educação Física escolar daquela época segregava os alunos por gênero,
favorecia os mais habilidosos em detrimento dos menos habilidosos, restringia
os conteúdos a apenas algumas modalidades esportivas e ginásticas, visava à
padronização dos gestos e do coletivo em vez de incentivar a expressão
individual de cada aluno, valorizava a competição e não a cooperação. Enfim,
era uma disciplina tecnicista, não-inclusiva e meramente instrutiva, e essa
análise não estaria equivocada, pois de fato corresponderia à realidade na época.
Utilizando uma terminologia mais contemporânea,
tratava-se de uma Educação Física que concentrava suas propostas didáticas na
dimensão procedimental dos conteúdos, ou seja, na aprendizagem de técnicas
esportivas, no desenvolvimento gestual dos alunos, enfim, no que passarei a
chamar daqui em diante de dimensão corporal dos objetos de ensino e
aprendizagem. Infelizmente, essa predominância da dimensão corporal se dava com
uma abordagem metodológica que era eficiente para uma minoria de alunos mais habilidosos
e cerceava a grande maioria dos alunos das possibilidades de aprender.
Pessoalmente, olhando essas fotos amareladas desses
meninos magricelas de cabelo "escovinha" e calções balofos, as
lembranças ficam um pouco contraditórias, pois elas também remetem a momentos
de companheirismo efetivo, diversão, aprendizagem individual e grupal, entre
outros aspectos positivos. Para minha sorte, eu pude fazer parte deste seleto
grupo de alunos que, por diversas razões, tinham mais facilidade em passar
ilesos pelo funil didático da Educação Física daquela época.
2. A nova Educação Física tem como foco a
democratização
Preocupação com a
inclusão de alunos menos habilidosos e portadores de deficiência.
Lembranças pessoais à parte, o que desejo ressaltar
com essa introdução nostálgica é que a Educação Física escolar passou por um
processo de mudanças muito intensas nesses 40 anos e mudou para melhor.
Os uniformes não são mais necessários, as aulas são
mistas e os conteúdos são mais diversificados. Existe uma preocupação
permanente com a inclusão dos alunos menos habilidosos e dos portadores de
deficiência. Os processos de ensino e aprendizagem valorizam da mesma maneira a
interação social entre os alunos e as conquistas específicas da dimensão
corporal.
A crise conceitual dos anos 80 enfrentada pela
Educação Física - e particularmente pela Educação Física Escolar - colocou o
modelo tradicional em profunda discussão. Com base nesse questionamento, toda
uma geração de educadores da área passou a pesquisar novas formas de atuação
didática e pedagógica, na busca de responder a perguntas como:
- Como fazer para que aquela menina pequenina e
tímida possa participar de um jogo de queimada sem se sentir amedrontada?
- De que modo é possível incentivar e criar
maneiras efetivas para que aquele aluno gordinho e desajeitado possa avançar no
processo de aprendizagem?
A partir desse momento, foi feito um grande esforço
de criação e sistematização de uma proposta metodológica que conseguisse, por
assim dizer, democratizar o acesso dos alunos, de TODOS os alunos, aos
processos de aprendizagem com êxito. Foram muitas as mudanças e os avanços
construídos pelos educadores da área. Com muitos erros e acertos, ajustes e
reajustes, foi possível constituir e aplicar uma proposta metodológica que
transformasse a chamada Educação Física tradicional em uma nova Educação Física
escolar. Diga-se em tempo: o que norteou essa busca foi justamente a garantia
de acesso à aprendizagem da dimensão corporal dos conteúdos da disciplina,
ainda que outros aspectos também passassem a ter um mesmo grau de importância.
Aos poucos, as aulas foram ficando cada vez menos
narradas e conduzidas apenas pelos professores. Eles foram gradativamente
abandonando os comandos e o apito, abrindo espaço para uma participação mais
ativa dos alunos. As filas foram substituídas por formas de organização mais
eficientes e dinâmicas. As propostas padronizadas passaram a contemplar mais
efetivamente as características individuais. A organização das atividades de
ensino e de aprendizagem passou a ocorrer em pequenos grupos, estruturados com
critérios intencionais visando potencializar a aprendizagem dos alunos e sua
participação. Enfim, são inúmeros os exemplos que poderiam ser citados para
ilustrar essa verdadeira revolução metodológica.
Apoiados conceitualmente nas teorias
construtivistas e sociointeracionistas (que apontam para uma perspectiva de uma
criança ativa no seu processo de interação com o conhecimento), os educadores
formularam propostas de ensino e de aprendizagem nas quais os alunos podiam e
deviam participar ativamente das aulas, resolvendo problemas, assumindo
responsabilidades, tomando decisões e criando desafios, nos planos individual e
grupal.
3. Brincadeiras, danças
e lutas passam a receber mais atenção nas aulas
Estudantes
da EM José Calasanz aprendem técnica de malabares com bambolês.
A compreensão mais clara
do papel das atividades lúdicas no processo de desenvolvimento e de
aprendizagem de crianças e jovens permitiu a inclusão de jogos e brincadeiras
nas propostas curriculares, desde brinquedos da cultura popular até versões
adaptadas dos esportes convencionais. As crianças e os educadores criaram um
imenso repertório de jogos e brincadeiras, adaptando regras, transformando os
espaços, construindo brinquedos, improvisando e criando materiais e objetos
utilizados nas atividades. O intuito era favorecer a participação de todos, o
respeito às diferenças individuais de ritmo de aprendizagem, o exercício da
solidariedade e da cooperação mesmo nas atividades competitivas - essas, por
sua vez, também ganharam um viés mais participativo e menos seletivo e
excludente.
É possível afirmar que,
nesse período, a Educação Física Escolar tem aperfeiçoado seus mecanismos
metodológicos para abordar a dimensão corporal (ou procedimental) dos conteúdos
e tem ampliado seu repertório de objetos de aprendizagem ao viabilizar o
trabalho educativo em uma dimensão atitudinal, dando a mesma importância para o
fazer e para o conviver. Nesse contexto, aprender gestos técnicos e ser
solidário com o colega passou a receber a mesma atenção dos educadores na
formulação dos processos de ensino e aprendizagem.
Outro aspecto que
contribuiu para os avanços nesse período foi a diversificação de conteúdos
delineados após a ampliação das práticas de cultura corporal consideradas
relevantes: jogos e brincadeiras, esportes, danças, lutas e ginásticas. Essa
ampliação de repertório das práticas da cultura corporal de movimento
contribuiu significativamente para multiplicar as possibilidades de
aprendizagem dos alunos, que passaram a se relacionar e a conhecer um universo
mais rico de atividades corporais. Essa diversificação também contribuiu para
que uma nova ampliação de objetos de conhecimento pudesse ocorrer na Educação
Física escolar.
4. A cultura invade a
Educação Física nas escolas
Aula
de capoeira na EMEF Professor Anézio Cabral.
Até aqui, as conquistas
se consolidaram no campo didático-pedagógico na abordagem das dimensões
corporais e atitudinais. Progressivamente, essa geração de eucadores tem
colocado o desafio de pesquisar e desenvolver uma proposta metodológica que
inclua também as dimensões conceituais dos conteúdos nas aulas de Educação
Física escolar.
Passamos, então, por uma
nova ampliação de campo de conteúdos, que considera a importância dos aspectos
sociais e culturais dos objetos de ensino e aprendizagem da área, o que
nomearei aqui como dimensão cultural da Educação Física escolar. A perspectiva
dessa ampliação permitiu que se considerasse relevante, por exemplo, conhecer
os aspectos históricos das práticas da cultura corporal de movimento, apreciar
suas peculiaridades éticas e estéticas, compreender sua relevância social na
constituição da identidade sociocultural de um grupo ou de uma nação, ampliar a
noção de respeito e admiração pela pluralidade cultural dessas práticas, entre
outros.
A compreensão de que as
práticas corporais são objetos socioculturais tornou possível perceber, por
exemplo, que conhecer um determinado esporte valorizado e cultivado por um
determinado povo é um instrumento para conhecer e respeitar esse mesmo povo. Ou
ainda, que o cultivo das práticas corporais é um processo dinâmico, que se
transforma constantemente em função dos contextos sociais, culturais,
econômicos em que são realizados. Essa percepção abre espaço para intervenções
didáticas e pedagógicas que podem instrumentalizar os aprendizes como criadores
e transformadores de sua própria cultura.
5. Abordar a dimensão
cultural das práticas corporais enriquece as aulas
Incluir
danças e brincadeiras amplia o repertório da disciplina.
A inclusão da dimensão
cultural dos conteúdos na Educação Física Escolar teve influência positiva no
desenvolvimento da proposta metodológica, permitindo a criação de atividades de
ensino e aprendizagem: o registro e a transformação de regras, a adaptação de
espaços e equipamentos, a pesquisa de campo e bibliográfica, a apreciação de
vídeos e filmes, a formulação de entrevistas para investigar outras culturas e
outros períodos históricos e a troca de repertório com outros grupos de
contextos socioculturais diversos (aprender sobre Jogos Indígenas, por
exemplo).
O fruto desse avanço
metodológico pode ser ilustrado com a descrição sintética de um projeto sobre
futebol realizado em uma escola de educação infantil, com um grupo de crianças
de seis anos, que durou um semestre:
- jogar futebol na
quadra, na grama, na areia, no pátio;
- pesquisar e ouvir
músicas brasileiras sobre o futebol;
- desenhar, pintar e
fazer esculturas sobre situações do jogo;
- organizar equipes em
subgrupos;
- escolher nomes e
desenhar símbolos para as equipes;
- jogar futebol de
botão;
- entrevistar
ex-jogadores profissionais;
- ouvir a gravação de
transmissões de jogos no rádio de diversas épocas;
- compor hinos e gritos
de guerra das equipes;
- pesquisar e adaptar
regras oficiais;
- compreender as funções
dos treinadores, massagistas, juízes e bandeirinhas;
- assistir a filmes
sobre o futebol;
- e, entre todas essas
atividades, jogar e jogar e jogar futebol.
Evidentemente, para que
tudo isso fosse possível, foi necessário o envolvimento de vários outros
educadores da comunidade escolar além do professor de Educação Física, como a
professora de classe, os funcionários da escola, os pais, a professora de artes
plásticas, a coordenação pedagógica, de modo que a organização do tempo e do
espaço escolar torna-se possível o desenvolvimento de toda essa sequência de
atividades, de forma sistematizada, registrada em todas as etapas, avaliada
permanentemente, e desenvolvida com a participação ativa das crianças.
Em síntese, as crianças
aprenderam a jogar futebol melhor do que no início do projeto, bem como
aprenderam uma série de aspectos atitudinais e culturais de uma modalidade
esportiva tão significativa no nosso ambiente sociocultural. Puderam ainda
desenvolver uma série de competências de pesquisa, registro, expressão e
comunicação de ideias e sentimentos e de apreciação e resolução de problemas e
desafios de diversas ordens.
Nesse contexto, a
construção de parcerias didáticas com outras disciplinas e com outros atores do
cotidiano escolar pode desempenhar um papel muito importante para enriquecer o
processo de aprendizagem dos alunos - sem que os momentos de vivência e
aprendizagem corporal fossem esquecidos - e contribuir para uma melhoria dos
projetos políticos pedagógicos das escolas para que fossem flexibilizados e
oxigenados.
Vejo nessa metodologia
de projetos uma ferramenta extremamente rica para que a Educação Física escolar
possa continuar se desenvolvendo nos aspectos didáticos e pedagógicos,
abordando as diversas dimensões de conteúdos de sua área de conhecimento,
ampliando as possibilidades de aprendizagem de crianças e jovens e garantindo a
manutenção dos avanços e conquistas arduamente construídos por essa geração de
educadores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário