sexta-feira, 30 de agosto de 2013

HISTÓRIA - CULTURA AFRO-BRASILEIRA

O que nos une também nos explica: o ensino da história e cultura afro-brasileira
 Estudantes e livros didáticos muitas vezes trazem visões estereotipadas sobre a história dos países e dos povos africanos. Desafio para os professores é investir na própria formação e criar ações que apresentem aos alunos novos elementos para as reflexões sobre o tema
1. Ensino sobre o tema enfrenta visões estereotipadas
Juliano Custódio Sobrinho, professor do curso de História da Universidade Nove Julho (Uninove)
"Daí a ênfase que dou (...) não propriamente à análise de métodos e técnicas em si mesmos, mas ao caráter político da educação, de que decorre a impossibilidade de sua neutralidade." (Paulo Freire)

Em 2012, durante os dias em que me dediquei como selecionador a ler projetos enviados por professores para concorrerem ao Prêmio Victor Civita, recebi um email de um ex-aluno da faculdade em que leciono relatando a dificuldade de ensinar os assuntos ligados à história africana e cultura afro-brasileira na escola em que trabalha. Segundo ele, seus alunos apresentavam uma visão muito negativa da figura do afrodescendente e dos elementos desse antepassado que se somaram à história do Brasil ao longo do tempo.
Palavras usadas por seus alunos expunham visões estereotipadas sobre o passado escravista e o período pós-abolição. Mais do que isso, a preocupação daquele professor estava em entender por que muitos recursos utilizados em sala de aula, como o próprio livro didático, corroboravam a perspectiva apresentada por esses alunos.Ao tentar verificar se seus alunos conseguiam conectar a história do continente africano com a história do Brasil, o professor se frustrou ainda mais. Ele percebeu que os alunos vislumbravam uma África sem diversidades econômicas, sociais e culturais. Um território empobrecido, caótico e contaminado pelas mazelas humanas e pelo vírus da Aids.As informações difundidas nos meios de comunicação e pelo senso comum pareciam ter causado grande efeito na cabeça daqueles alunos e criado a percepção de que nada de positivo poderia ser extraído de um continente fadado à miséria. Parecia difícil que surgissem do debate com eles noções sobre a diversidade dos povos africanos. Mais do que isso, eles não conseguiam perceber que nem todas as nações africanas hoje se consomem em miséria e em conflitos civis e étnicos.Qualquer tentativa de aproximação entre o passado africano com a nossa história - e aquilo que nos une enquanto povos que em alguns momentos históricos entrecruzaram suas trajetórias - parecia não fazer sentido para os estudantes.
2. Professores são desafiados a ampliar a própria formação
O desafio de ensinar que também somos frutos desses elementos étnico-culturais, que contribuíram de várias maneiras para a formação da sociedade brasileira, não era tarefa fácil. Era preciso criar estratégias para o direcionamento da ação docente e que essas pudessem promover a reconstrução e a ressignificação de conceitos, contextos e métodos que auxiliassem na narrativa do professor.O meu ex-aluno, hoje professor, estava no caminho certo, já que conhecia o problema e sabia da necessidade de ampliar a sua própria formação. Por mais qualificados que possamos ser, há situações na sala de aula que, nos dias de hoje, colocam ao professor o papel de evocar saberes múltiplos e estratégicos, que muitas vezes não podem se limitar ao conhecimento adquirido durante a sua graduação.O desafio estava lançado e aquela conversa havia me deixado intrigado. No exato momento em que recebi aquele email, estava vivendo a grande experiência de conhecer um pouco sobre a realidade do ensino de História no país por meio da leitura dos projetos inscritos no Prêmio da Fundação Victor Civita Educador Nota 10. Para minha surpresa, do montante de projetos recebidos para a edição do prêmio em 2012, a temática mais abordada estava ligada à história africana e à história e cultura afro-brasileira.Passei a refletir sobre a formação destinada ao professorado acerca deste tema e como ele vem sendo colocado na aprendizagem dos alunos hoje. Se olhasse para a minha trajetória escolar, e de alguns colegas de profissão (e acredito que alguns leitores também se identificarão com o que vou dizer), perceberia que os conteúdos históricos sobre a escravidão negra e sobre a pós-abolição também estavam recheados de estereótipos.
3. Conhecimento sobre história se renova e ensino acompanha essas mudanças
Nas últimas décadas, a historiografia vem apresentando uma série de novos trabalhos que procuraram renovar a percepção sobre a escravidão negra e nossa sociedade ao longo da história. A forma de enxergar a participação do escravo nas ações e práticas cotidianas também foi repensada.Uma abordagem sobre a escravidão que considera simplesmente a violência física e a opressão sobre os escravos - e que não os observa enquanto sujeitos que procuraram vencer o cativeiro, provocando outras ações além de fugas e agressões a seus senhores - já não é mais recomendada para o ensino na escola.O conhecimento histórico não é imutável e pode ser revisto à medida que o campo científico avança. Nós professores de História precisamos refletir constantemente sobre a nossa formação e os saberes docentes que reunimos para realizar o trabalho em sala de aula. Por isso, a formação contínua é uma condição necessária e primordial em nossa carreira. Ela nos oferece novos saberes e metodologias para o desafio da sala de aula. Um saber acadêmico atualizado e uma transposição didática adequada constituem princípios básicos que o professor não pode dispensar.
4. Novas visões sobre as relações étnico-raciais no Brasil
Quando falamos da escravidão negra na história do Brasil, estamos nos referindo a mais de 300 anos de instituição escravista arraigada em nosso passado, que nos apresentam consequências socioeconômicas ainda marcantes na contemporaneidade. A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, não significou o fim das práticas escravistas.Moldamos uma sociedade desigual que não promoveu verdadeiramente a inserção dos egressos do cativeiro nos setores sociais. Fomos educados a acreditar no conceito de democracia racial, presente na obra Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e essa percepção sobre nossa formação social não nos fez enxergar a realidade.Contudo, as reflexões sobre as relações étnico-raciais no Brasil, a formação da identidade brasileira e o papel do afrodescendente na história nacional produziram mudanças importantes nas diretrizes curriculares. Em 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639/03 tornou obrigatório o ensino da história africana e da cultura afro-brasileira no currículo brasileiro, em especial nas disciplinas de Arte, Literatura e História.A sociedade brasileira é marcada por uma história de racismo e segregação. Nossas normas jurídicas nunca institucionalizaram um sistema de "apartheid", mas as ações discriminatórias são praticadas há muito tempo. Isso pode ser comprovado quando consultamos os índices atuais de escolaridade, de renda ou de empregabilidade.A criação da Lei 10.639/03 representou a conquista de anos de reivindicações dos movimentos negros no Brasil. Ela se consolidou como uma frente de combate ao racismo e às desigualdades sociais, assumida pelo próprio Estado.A lei nos provoca a repensar a maneira como ensinamos a história brasileira e redimensionar o olhar sobre o passado. Não podemos mais ensinar os conteúdos de história do Brasil simplesmente interligados com a história do continente europeu, em especial a história de Portugal a partir de sua expansão marítima, nos séculos 15 e 16. Um novo olhar sobre o passado nos faz entender que ensinar história do Brasil significa abordar a história do continente africano. Isso sem falarmos da história e cultura indígena que também precisa ser incluída nessa reflexão sobre o que é ensinar história hoje.
5. Questões para um ensino de História mais reflexivo e provocador
Gostaria de propor algumas outras questões que podem potencializar os trabalhos em sala de aula com esta temática:
  • Os conteúdos sobre escravidão e a pós-abolição estão presentes em vários momentos e em quase todos os anos letivos da Educação Básica, segundo os parâmetros curriculares. Escolha um desses tópicos para desenvolver projetos sobre essa temática;
  • Não é necessário estudar todo o conteúdo sobre escravidão, por exemplo, para introduzir um projeto. Trabalhe com temas bem recortados e aproveite esse assunto para dar o ponto de partida no desenvolvimento de suas ideias;
  • É sempre importante que o conteúdo estudado possa responder a questionamentos presentes na realidade dos alunos. Esta é uma grande oportunidade para produzir um diálogo entre o passado histórico e o presente com os alunos. A inclusão da história e cultura afro-brasileira também reafirma a necessidade de intervenções estatais na promoção de políticas afirmativas. É possível apresentar à turma o porquê de estudos sobre a escravidão ou a pós-abolição;
  • Provocar os alunos, no sentido de conscientizá-los acerca da temática, pode levá-los a redimensionar seu olhar sobre o passado histórico. Contudo, para que isso aconteça, é necessário que de fato ele estude esse período. Não existe uma conscientização efetiva sem aquisição de conhecimento específico no tema. Processos de leitura e interpretação, escrita de textos, discussões em sala e formulações argumentativas embasadas nos estudos científicos são etapas fundamentais a serem ensinadas para a turma nesse momento;
  • Outra questão importante é fazê-los refletir que, independente de nossas características fenotípicas (principalmente a cor da pele), somos frutos de uma sociedade miscigenada e que devemos nos reconhecer enquanto parte das heranças não só genéticas, mas também culturais de nossos antepassados africanos. O elemento aglutinador, que emana da participação africana na história e na sociedade brasileiras, não está somente no outro, mas também em mim.
Recomendo aos professores interessados que procurem boas referências de estudo ou busquem cursos que possam oferecer espaços de aprendizado sobre esse grande tema.
Precisamos possamos promover um ensino de História reflexivo e provocador, que leve nossos alunos a se verem como seres atuantes nesse processo. Acredito que, ao nos reposicionarmos diante dos conteúdos ligados à história africana e/ou à história e cultura afro-brasileira, podemos contribuir para a formação de sujeitos históricos transformadores de suas realidades.
Quer saber mais?
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. 5ªed. SP: Companhia das Letras, 2003.

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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global, 2004.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL, Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. p.39-62.

GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX.RJ: Relume-Dumará, 1994.

LARA, Silvia. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

MACHADO, Maria Helena P.T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas.1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os Significados da Liberdade do Sudeste Escravista, Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

MATTOS, Regiane. História e Cultura Afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2011.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. RJ: Mauad X, 2007.

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REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil. SP: Companhia das Letras,1989.

ROCHA, Helenice; MAGALHÃES, Marcelo; GONTIJO, Rebeca. A escrita da história escolar. Memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

SLENES, Robert. "Lares negros, olhares brancos: história da família escrava no século XIX". Revista Brasileira de História, v.8, nº16, 1988.

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