O que nos une também nos
explica: o ensino da história e cultura afro-brasileira
Estudantes e livros didáticos muitas vezes trazem
visões estereotipadas sobre a história dos países e dos povos africanos.
Desafio para os professores é investir na própria formação e criar ações que
apresentem aos alunos novos elementos para as reflexões sobre o tema
1. Ensino sobre o tema enfrenta visões
estereotipadas
Juliano Custódio
Sobrinho, professor do curso de História da
Universidade Nove Julho (Uninove)
"Daí a ênfase que dou (...) não propriamente à
análise de métodos e técnicas em si mesmos, mas ao caráter político da
educação, de que decorre a impossibilidade de sua neutralidade." (Paulo
Freire)
Em 2012, durante os dias em que me dediquei como selecionador a ler projetos enviados por professores para concorrerem ao Prêmio Victor Civita, recebi um email de um ex-aluno da faculdade em que leciono relatando a dificuldade de ensinar os assuntos ligados à história africana e cultura afro-brasileira na escola em que trabalha. Segundo ele, seus alunos apresentavam uma visão muito negativa da figura do afrodescendente e dos elementos desse antepassado que se somaram à história do Brasil ao longo do tempo.
Palavras usadas por seus alunos expunham visões
estereotipadas sobre o passado escravista e o período pós-abolição. Mais do que
isso, a preocupação daquele professor estava em entender por que muitos
recursos utilizados em sala de aula, como o próprio livro didático,
corroboravam a perspectiva apresentada por esses alunos.Ao tentar verificar se
seus alunos conseguiam conectar a história do continente africano com a
história do Brasil, o professor se frustrou ainda mais. Ele percebeu que os
alunos vislumbravam uma África sem diversidades econômicas, sociais e culturais.
Um território empobrecido, caótico e contaminado pelas mazelas humanas e pelo
vírus da Aids.As informações difundidas nos meios de comunicação e pelo senso
comum pareciam ter causado grande efeito na cabeça daqueles alunos e criado a
percepção de que nada de positivo poderia ser extraído de um continente fadado
à miséria. Parecia difícil que surgissem do debate com eles noções sobre a
diversidade dos povos africanos. Mais do que isso, eles não conseguiam perceber
que nem todas as nações africanas hoje se consomem em miséria e em conflitos
civis e étnicos.Qualquer tentativa de aproximação entre o passado africano com
a nossa história - e aquilo que nos une enquanto povos que em alguns momentos
históricos entrecruzaram suas trajetórias - parecia não fazer sentido para os
estudantes.
2. Professores são desafiados a ampliar a própria
formação
O desafio de ensinar que também somos frutos desses
elementos étnico-culturais, que contribuíram de várias maneiras para a formação
da sociedade brasileira, não era tarefa fácil. Era preciso criar estratégias
para o direcionamento da ação docente e que essas pudessem promover a
reconstrução e a ressignificação de conceitos, contextos e métodos que
auxiliassem na narrativa do professor.O meu ex-aluno, hoje professor, estava no
caminho certo, já que conhecia o problema e sabia da necessidade de ampliar a
sua própria formação. Por mais qualificados que possamos ser, há situações na
sala de aula que, nos dias de hoje, colocam ao professor o papel de evocar
saberes múltiplos e estratégicos, que muitas vezes não podem se limitar ao
conhecimento adquirido durante a sua graduação.O desafio estava lançado e
aquela conversa havia me deixado intrigado. No exato momento em que recebi
aquele email, estava vivendo a grande experiência de conhecer um pouco sobre a
realidade do ensino de História no país por meio da leitura dos projetos
inscritos no Prêmio da Fundação Victor Civita Educador Nota 10. Para minha
surpresa, do montante de projetos recebidos para a edição do prêmio em 2012, a
temática mais abordada estava ligada à história africana e à história e cultura
afro-brasileira.Passei a refletir sobre a formação destinada ao professorado
acerca deste tema e como ele vem sendo colocado na aprendizagem dos alunos
hoje. Se olhasse para a minha trajetória escolar, e de alguns colegas de
profissão (e acredito que alguns leitores também se identificarão com o que vou
dizer), perceberia que os conteúdos históricos sobre a escravidão negra e sobre
a pós-abolição também estavam recheados de estereótipos.
3. Conhecimento sobre história se renova e ensino
acompanha essas mudanças
Nas últimas décadas, a historiografia vem
apresentando uma série de novos trabalhos que procuraram renovar a percepção
sobre a escravidão negra e nossa sociedade ao longo da história. A forma de
enxergar a participação do escravo nas ações e práticas cotidianas também foi
repensada.Uma abordagem sobre a escravidão que considera simplesmente a
violência física e a opressão sobre os escravos - e que não os observa enquanto
sujeitos que procuraram vencer o cativeiro, provocando outras ações além de
fugas e agressões a seus senhores - já não é mais recomendada para o ensino na
escola.O conhecimento histórico não é imutável e pode ser revisto à medida que
o campo científico avança. Nós professores de História precisamos refletir
constantemente sobre a nossa formação e os saberes docentes que reunimos para
realizar o trabalho em sala de aula. Por isso, a formação contínua é uma
condição necessária e primordial em nossa carreira. Ela nos oferece novos
saberes e metodologias para o desafio da sala de aula. Um saber acadêmico
atualizado e uma transposição didática adequada constituem princípios básicos
que o professor não pode dispensar.
4. Novas visões sobre as relações étnico-raciais no
Brasil
Quando falamos da escravidão negra na história do
Brasil, estamos nos referindo a mais de 300 anos de instituição escravista
arraigada em nosso passado, que nos apresentam consequências socioeconômicas
ainda marcantes na contemporaneidade. A abolição da escravidão, em 13 de maio
de 1888, não significou o fim das práticas escravistas.Moldamos uma sociedade
desigual que não promoveu verdadeiramente a inserção dos egressos do cativeiro
nos setores sociais. Fomos educados a acreditar no conceito de democracia racial,
presente na obra Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e essa
percepção sobre nossa formação social não nos fez enxergar a realidade.Contudo,
as reflexões sobre as relações étnico-raciais no Brasil, a formação da
identidade brasileira e o papel do afrodescendente na história nacional
produziram mudanças importantes nas diretrizes curriculares. Em 9 de janeiro de
2003, a Lei 10.639/03 tornou obrigatório o ensino da história africana e da
cultura afro-brasileira no currículo brasileiro, em especial nas disciplinas de
Arte, Literatura e História.A sociedade brasileira é marcada por uma história
de racismo e segregação. Nossas normas jurídicas nunca institucionalizaram um
sistema de "apartheid", mas as ações discriminatórias são praticadas
há muito tempo. Isso pode ser comprovado quando consultamos os índices atuais
de escolaridade, de renda ou de empregabilidade.A criação da Lei 10.639/03
representou a conquista de anos de reivindicações dos movimentos negros no
Brasil. Ela se consolidou como uma frente de combate ao racismo e às
desigualdades sociais, assumida pelo próprio Estado.A lei nos provoca a
repensar a maneira como ensinamos a história brasileira e redimensionar o olhar
sobre o passado. Não podemos mais ensinar os conteúdos de história do Brasil
simplesmente interligados com a história do continente europeu, em especial a
história de Portugal a partir de sua expansão marítima, nos séculos 15 e 16. Um
novo olhar sobre o passado nos faz entender que ensinar história do Brasil
significa abordar a história do continente africano. Isso sem falarmos da
história e cultura indígena que também precisa ser incluída nessa reflexão
sobre o que é ensinar história hoje.
5. Questões para um ensino de História mais
reflexivo e provocador
Gostaria de propor algumas outras questões que
podem potencializar os trabalhos em sala de aula com esta temática:
- Os conteúdos sobre escravidão e a pós-abolição
estão presentes em vários momentos e em quase todos os anos letivos da
Educação Básica, segundo os parâmetros curriculares. Escolha um desses
tópicos para desenvolver projetos sobre essa temática;
- Não é necessário estudar todo o conteúdo sobre
escravidão, por exemplo, para introduzir um projeto. Trabalhe com temas
bem recortados e aproveite esse assunto para dar o ponto de partida no
desenvolvimento de suas ideias;
- É sempre importante que o conteúdo estudado
possa responder a questionamentos presentes na realidade dos alunos. Esta
é uma grande oportunidade para produzir um diálogo entre o passado
histórico e o presente com os alunos. A inclusão da história e cultura
afro-brasileira também reafirma a necessidade de intervenções estatais na
promoção de políticas afirmativas. É possível apresentar à turma o porquê
de estudos sobre a escravidão ou a pós-abolição;
- Provocar os alunos, no sentido de
conscientizá-los acerca da temática, pode levá-los a redimensionar seu
olhar sobre o passado histórico. Contudo, para que isso aconteça, é
necessário que de fato ele estude esse período. Não existe uma
conscientização efetiva sem aquisição de conhecimento específico no tema.
Processos de leitura e interpretação, escrita de textos, discussões em
sala e formulações argumentativas embasadas nos estudos científicos são
etapas fundamentais a serem ensinadas para a turma nesse momento;
- Outra questão importante é fazê-los refletir
que, independente de nossas características fenotípicas (principalmente a
cor da pele), somos frutos de uma sociedade miscigenada e que devemos nos
reconhecer enquanto parte das heranças não só genéticas, mas também
culturais de nossos antepassados africanos. O elemento aglutinador, que
emana da participação africana na história e na sociedade brasileiras, não
está somente no outro, mas também em mim.
Recomendo aos professores interessados que procurem
boas referências de estudo ou busquem cursos que possam oferecer espaços de
aprendizado sobre esse grande tema.
Precisamos possamos promover um ensino de História
reflexivo e provocador, que leve nossos alunos a se verem como seres atuantes
nesse processo. Acredito que, ao nos reposicionarmos diante dos conteúdos
ligados à história africana e/ou à história e cultura afro-brasileira, podemos
contribuir para a formação de sujeitos históricos transformadores de suas
realidades.
Quer saber mais?
ABREU, Martha; SOIHET,
Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política e leituras do passado: historiografia
e ensino de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. 5ªed. SP: Companhia das Letras, 2003.
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P.T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas.1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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