Professora versus tia: qual é o papel da afetividade na Educação Infantil?
Há algum tempo, fui procurada pela mãe de um aluno da Educação Infantil que se queixava do fato da professora do filho não ser adequada para a função.
– O que a fez chegar a essa conclusão? – perguntei para a mãe.
E a resposta foi:
– É uma professora muito “seca”. Não demonstra afetividade. Imagine que as crianças nem a tratam por “tia”! Chamam-na pelo nome…
Indaguei se havia mais alguma observação além dessa e a resposta serviu para refletir toda a crença dela sobre o assunto:
- A Educação Infantil tem que ser uma continuação da casa, e chamar a professora de “tia” é uma demonstração de carinho de ambas as partes: professora e criança. Acho que ela não sabe o que é afetividade.
Nesses momentos, em que a família quer demonstrar seu conhecimento sobre a função e o papel da Educação escolar na vida dos filhos, todo cuidado é pouco! Embora muitas vezes nossa vontade seja a de colocar a mãe em seu devido lugar, a situação é bastante delicada para tanta frieza. O que acontece é que todas as demandas das mães são legítimas para elas. Cabe a nós, educadores, acolher os sentimentos de insegurança e dúvida e esclarecer as famílias com o embasamento teórico necessário para tranquilizá-las.
Os pais e responsáveis dos pequeninos acreditam, de fato, que a Educação Infantil deve ser um espaço de continuidade da própria casa, onde as crianças sejam cuidadas, possam conviver com outras crianças e se sentir felizes e seguras. Sendo assim, a figura do adulto responsável por promover e garantir tais condições é realmente próxima da figura de uma “tia”, preferencialmente daquela que mesmo não tendo se casado e tido filhos, adora crianças e, fará de tudo para “adoçar” o mundo de seus alunos. Além de ser um grande e desrespeitoso equívoco quanto ao papel do educador, essa crença apresenta resquícios de uma concepção de Educação Infantil já superada.
Historicamente, as primeiras instituições educativas para as crianças pequenas surgiram na França, durante a Revolução Industrial. A necessidade da mão de obra feminina implicava a criação de espaços destinados aos filhos das trabalhadoras. Portanto, essas primeiras instituições eram estritamente de cunho assistencial, ou seja, tinham como objetivo prover as crianças dos cuidados necessários para sua saúde e bem-estar, durante o período em que suas mães estivessem trabalhando. Essa visão assistencialista não demandava dos adultos responsáveis conhecimentos específicos além dos que tinham em relação aos cuidados com os próprios filhos, sobrinhos, netos, etc.
No Brasil, o antigo jardim da infância trazia muito dessa perspectiva do “cuidar”,condecorando as profissionais responsáveis pelos pequenos com o título de “tia”: um termo afetuoso dado para quem se torna responsável pelas crianças na ausência das mães. Não vou aqui enfocar a perspectiva ideológica dessa terminologia que destitui do educador sua identidade, tanto de sujeito como de profissional. Minha reflexão se volta para a confusão que o termo “tia” gera quando é considerado como símbolo de afetividade.
Com os avanços dos estudos na área da Psicologia do Desenvolvimento, a partir da segunda metade do século 20 cria-se uma nova concepção do que é ser criança e, portanto, do papel da Educação Infantil. No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, clareia a necessidade de superar a visão assistencialista da creche e conceber a criança como sujeito social e possuidor de direitos. Assim, a especificidade da Educação de crianças de 0 a 6 anos tem o binômio cuidar/educar, como dimensões complementares, em que se considera o cuidar um compromisso com o outro, com sua singularidade, com suas necessidades, confiando em suas capacidades. E, é claro, disso depende a construção de um vínculo afetivo entre quem cuida e quem é cuidado.
A afetividade na Educação é indissociável da cognição. Ou seja: ela vai muito além das demonstrações de carinho, do “colinho” dado aos pequenos e dos beijos e abraços apertados… Entendemos a afetividade como uma dimensão da psique humana que alimenta e é alimentada pela cognição. Assim, a criança se sente segura e feliz não porque chama sua professora de “tia”, mas porque o ambiente que lhe é apresentado é, ao mesmo tempo,instigante e acolhedor. A afetividade envolve o autoconhecimento: o que gosto, de que tenho medo, como eu me sinto diante de diversas situações, enfim, quem eu sou. E nesse processo de construção da própria identidade, o nome de cada um está presente como representação de parte da sua própria história. Não é a toa que logo no início do ano, prepara-se quadros com fotos dos pequenos e seus familiares. São momentos importantes para trabalhar com os temas da família e da identidade. E está aí uma ótima oportunidade para a criança perceber que em nenhuma das fotos há a imagem da tia/professora. Só estão as pessoas consideradas da família. A professora não é da família. É uma pessoa que escolheu trabalhar com a Educação e que também tem um nome. Por experiência própria, posso garantir que não há nenhum trauma nisso. Há, sim, a insistência – mais por hábito do que por provocação – por parte da família em perpetuar o simbolismo presente na nomenclatura “tia”. Mas nada que nossos esclarecimentos científicos não possam reverter. Novamente nossa premissa para o trabalho na e da escola é o conhecimento.
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