O que o ensino da Arte pode
aprender com a arte?
Em cinco capítulos, vamos discutir a relação entre
o ensino de Arte na escola e a produção artística contemporânea, trazendo os
exemplos de projetos reais, realizados em escolas brasileiras. O objetivo é
provocar a reflexão sobre como as transformações do campo da arte refletem na
Educação
1. Para que ensinar Arte na escola de hoje
'A Casa É o Corpo',
instalação de Lygia Clark
Marisa Szpigel, coordenadora
de Artena Escola da Vila, em São Paulo, e selecionadora do Prêmio Victor
CivitaEducador Nota 10
"Arte é o que faz a vida ser mais interessante
que a arte". (Robert Filliou)
Falar sobre o ensino da Arte em
uma perspectiva contemporânea significa olhar para os acontecimentos do
passado, do presente e do futuro (por que não?), presentificando-os.
A arte que se produz hoje é a maior referência que
tenho para refletir sobre isto, e vou tentar explicar o motivo. Quando estou em
contato direto com a arte contemporânea, parece que, ao mesmo tempo, tudo que
já se fez na história da arte e o que ainda está por ser feito se coloca em mim
(e não diante de mim). A arte precisou de todos esses séculos para colocar em
evidência que o seu valor está, justamente, na relação que estabelecemos com a
arte em si, e não nos seus objetos (obras).
Estar em contato com a arte parece ser muito
revelador, e a palavra contato, neste caso, é fundamental. Contato atende
a duas dimensões importantes da experiência com a arte: o tocar - relacionar-se
com matérias e materiais - e o ser tocado - sentir-se afetado pelos
acontecimentos. Nas duas dimensões o indivíduo ocupa um lugar fundamental.
O contato dota de sentido as experiências, faz com
que sujeito-ação-objeto se alinhem em uma relação horizontal e sem hierarquias,
na qual todos são igualmente importantes - o que podemos chamar de vivo
contato.
Deve-se observar que há uma dimensão política
presente nessa ideia - política, como uma perspectiva mais ampla de agir no
mundo e sentir-se potente para isso. O que entendo por ensinar e aprender Arte
hoje tem a ver com o agir poeticamente no mundo, como um caminho para poder (ou
sentir o poder de) entender o mundo e se entender no mundo.
2. Pluralidade nos
projetos de Arte na escola
O mundo é plural e como
não poderia deixar de ser, a arte de hoje também é, e consequentemente a
Educação. Tenho procurado entender osprojetos interdisciplinares -
compostos por mais de uma disciplina - desse ponto de vista. A pluralidade
revela-se como possibilidade de conectar conhecimentos de diferentes naturezas,
tornando possível a constituição de uma rede de saberes que pode potencializar
a aprendizagem dos alunos, por dotá-la de sentido. Essa ideia exige do
professor ou dos professores (os envolvidos em um projeto de natureza
interdisciplinar) uma articulação cuidadosa na elaboração das situações de
ensino, para que os conteúdos não sejam tratados na superficialidade e de modo
artificial.
Tomar decisões sobre a
integração de diferentes disciplinas na elaboração de projetos requer um
tratamento dos conteúdos enquanto campo de conhecimento. Dominar diferentes
conhecimentos didáticos, portanto, é uma premissa para o êxito dos projetos
interdisciplinares.
Observamos, hoje, na
poética de muitos artistas, investigações amplas, que implicam diferentes
linguagens e não raro abarcam diversas áreas do conhecimento. Essas conexões
são fundamentais para o trabalho acontecer e, em seu processo, o artista
precisa mergulhar em pesquisas que exigem dedicação e uma imersão na
complexidade de cada área. Como podemos transpor para a aula este espírito leonardesco de olhar para o mundo
por diferentes pontos de vista ao mesmo tempo artísticos, literários e
científicos, sem descaracterizar o que há de mais precioso nesses processos?
A pluralidade, fenômeno
presente na contemporaneidade, exige cautela, para que possamos levá-la para a
realidade da sala de aula mantendo a potência de integração e não de mistura
incipiente. Questionamentos do tipo "Quais linguagens ou quais áreas são
fundamentais na realização do projeto?" ou "Se uma área ou disciplina
for suprimida, ainda assim mantém-se o sentido do trabalho?" são algumas
das perguntas que ajudam no momento da tomada de decisões em relação a opções
interdisciplinares e de integração de linguagens. Pode-se concluir, por
exemplo, que um projeto lide com uma única linguagem, realizado em uma única
disciplina, e isso não faz dele um projeto menos complexo ou pouco
significativo.
O que caracteriza a
opção por trabalhar com projetos tem mais relação com a necessidade de
desencadear processos que exigem mais tempo e uma quantidade de experiências
que possibilitem um mergulho na complexidade da prática artística, do que com a
necessidade de envolver mais de uma disciplina para torná-lo complexo.
Bom exemplo: um projeto
sobre o desenho ajudou a transformar o olhar dos alunos
Muitos projetos se perdem em temas muito amplos que inviabilizam pesquisas e investigações, na busca de contextualizações ou de temas relacionados a outras áreas, como se a disciplina de Arte não tivesse conteúdos e objetivos próprios. Tratar de uma única linguagem e de uma única modalidade pode ser considerado uma qualidade.
Muitos projetos se perdem em temas muito amplos que inviabilizam pesquisas e investigações, na busca de contextualizações ou de temas relacionados a outras áreas, como se a disciplina de Arte não tivesse conteúdos e objetivos próprios. Tratar de uma única linguagem e de uma única modalidade pode ser considerado uma qualidade.
Assim, um projeto pode
tratar de questões próprias da linguagem, com propostas descontextualizadas,
mas com aprendizagens específicas, que podem no processo, ser experimentadas em
diferentes contextos didáticos, a ponto de transformar hábitos cotidianos.
Por exemplo, o projeto O
artista e a natureza, realizado pela professora Elana Gomes Pereira, da
Escola Projeto Vida na cidade de São Paulo, partiu de uma pergunta: "Quais
seriam as possíveis relações entre arte e natureza?". A primeira hipótese
levantada pelos estudantes estava relacionada à ideia de contemplação da
natureza, ou seja, olhar para as paisagens. As crianças acertaram em cheio. Mas
o caminho para que pudessem estabelecer essa, que é uma das possíveis relações
entre o artista e a natureza, seria decisivo, e não é tão óbvio. A observação
da natureza para desenhá-la, o próprio ato de desenhar na busca de diferenciar
graficamente a diversidade de linhas, texturas, formas, cores e tonalidades faz
com que o olhar novamente para a natureza torne-se mais contemplativo, pois
mais aspectos tornam-se visíveis.
A sequência de
atividades planejada pela professora abarcava algumas propostas de desenho de
observação direta (da própria natureza) e indireta (de fotografias da
natureza). Essas propostas contribuíram para que os alunos investigassem quais
elementos gráficos poderiam ser utilizados para desenhar, e essa investigação
tinha uma abertura ajustada, de modo que cada aluno pudesse fazer suas
pesquisas gráficas, na busca de diferentes soluções de enquadramento, texturas,
espessuras da linha, ou seja, uma pesquisa muito peculiar a cada aluno.
Essas aprendizagens de
conteúdos relativos à modalidade desenho tinham um contexto bem delineado em
relação à ampliação do repertório gráfico das crianças, mas o tratamento
didático dado a elas, ou seja, o fato de os alunos precisarem observar
detalhadamente a natureza para descobrir uma infinidade de formas e linhas, e
transpor esse tipo de observação para a linguagem do desenho, não só modificou
o modo de desenhar, mas transformou o modo como todos olhavam para a natureza.
Entre uma proposta de
desenho e outra, a professora levou algumas imagens de artistas que realizaram
desenhos de observação da natureza, para que os alunos pudessem estabelecer
relações entre suas pesquisas gráficas e aquelas de outros artistas. Essas
trocas de repertório gráfico são bem-vindas. Com certeza Van Gogh e Benedito
Calixto, artistas que os alunos apreciaram, iriam se deliciar com essa troca de
recursos gráficos.
3. A construção de
identidade em três propostas de trabalho em Arte
Uma das etapas do
projeto de Arte Revelando Riquezas, desenvolvido pela professora Vera Terrabuio
Lucato, na cidade de Dois Córregos, em São Paulo
Apreciar arte na escola
é mais do que gostar. Apreciar é um dos eixos que contribuem para que
os alunos estabeleçam uma relação sensível com a arte e por que não dizer, com
diferentes dimensões da vida. Como ser tocado pela arte? Certa vez, ouvi o
professor Yves de La Tailledizer que atribuir valor (referindo-se à
relação com a arte) significa atribuir afeto.
Quadros vivos foi
o título dado ao projeto que a professora Marcela Wanderley Gaio, da Escola
Municipal Professora Leocádia, no Rio de Janeiro, realizou junto aos alunos de
9º ano. A professora queria que os alunos se aproximassem mais da arte e, com
certeza, isso aconteceu. Os alunos não apenas se aproximaram, mas literalmente
entraram na obra de corpo e alma.
Ela queria que os alunos
se expressassem por meio de diferentes materiais e formas. Eles deveriam
recriar no plano tridimensional, obras bidimensionais. Os alunos foram
desafiados a pesquisar materiais e objetos para concretizar a proposta e para
isso trabalharam com diferentes modalidades e linguagens: colagem, construção,
instalação, em alguns casos com a própria pintura e com o corpo (performance).
Trabalharam, ainda, com a fotografia para registrar a efemeridade do quadro
vivo.
O que se destaca nesse
trabalho é o diagnóstico que a professora faz em relação ao mundo plural em que
seus alunos adolescentes vivem - eles estão imersos em uma diversidade de
linguagens e lançam mão delas para se comunicar e se relacionar.
Ela buscou conhecer mais
sobre o assunto, pesquisou artistas que integram linguagens e definiu a entrada
do projeto ao apresentar o videoclipe 70
Million da banda americana Hold Your Horses, que se apropria de
obras de arte bastante conhecidas, criando releituras com seus próprios
integrantes.
Quando a professora opta
por transformar quadros em quadros vivos, o corpo passa a ser um elemento
fundamental no trabalho e as relações entre as linguagens visual e corporal
passam a ser articuladas. Além disso, a proposta de solicitar que os alunos
escolhessem as obras que queriam recriar merece atenção especial. Os estudantes
verbalizaram em relatórios que nessa etapa tiveram muita dificuldade em relação
à escolha da obra e é necessário refletir sobre o modo como se relacionaram com
a proposta planejada. Colocar o corpo na obra é colocar-se na obra. Isso
significa experimentar estar ali, ser parte dela. Onde escolhemos estar e por
que são perguntas fundamentais a serem levadas aos alunos. Faz pensar sobre a
obra e refletir sobre si. Um trabalho que toca em questões de identidade.
A partir do momento em
que o corpo passa a ser parte da obra, e não qualquer parte, mas a mais
importante, abre-se um campo de investigação das relações entre o corpo e o
espaço. O corpo pulsa nesse espaço e a experiência que tive ao ver as fotos dos
alunos dentro da obra foi muito importante. A expressão estava no rosto e no
corpo de cada um. Quando a professora pediu que eles fizessem a releitura, ou
seja, que transformassem o quadro, parece que se romperam barreiras com relação
à pessoa retratada no quadro. E fica a pergunta: será que há identificação
entre o retratado e aquele que olha o retrato? Vale apreciar os retratos e, a
partir daí, experimentar novas expressões e modos de colocar o corpo, para
compreender porque esse foi o quadro escolhido. Analisar cada etapa do projeto,
ouvir os alunos e como estão se relacionando com as propostas é uma tarefa
necessária.
A fotografia cumpre o
papel de documentação nesse projeto e traz para a discussão um conceito
importante hoje: a efemeridade. A linguagem que está em foco na proposta
descrita acima é a performance, que tem como princípio fundante a efemeridade.
Olhar poético para desvelar o lugar
O contexto em que o trabalho se realiza, que podemos chamar de contexto de recepção, também influencia os processos de construção poética. Isso ocorre porque o corpo guarda memórias do ambiente que habita. Essas memórias podem ficar adormecidas e um modo de ativá-las é a via poética.
Olhar poético para desvelar o lugar
O contexto em que o trabalho se realiza, que podemos chamar de contexto de recepção, também influencia os processos de construção poética. Isso ocorre porque o corpo guarda memórias do ambiente que habita. Essas memórias podem ficar adormecidas e um modo de ativá-las é a via poética.
O projeto Revelando riquezas, realizado pela
professora Vera Cristina Terrabuio Lucato da EMEFEI Oscar Novakoski, em Dois
Córregos, a 255 quilômetros de São Paulo, abarca as questões ligadas à memória
e que provocam reflexos na realidade, mesmo que as pessoas não se deem conta
disso imediatamente.
Vera optou pela via
poética para que os alunos do 9º ano pudessem olhar para o entorno e refletir
sobre como o lugar em que vivem está presente em cada um e como ele pode ser
considerado na constituição da identidade do grupo.
O projeto de fotografia
abarcou as dimensões documental e artística. Documental, pois a proposta tinha
como foco a valorização do trabalho rural; e artística porque a professora
propõe que os alunos sejam tocados pela realidade por meio do mergulho em um
processo de criação focado na linguagem fotográfica, uma via poética para agir
sobre a realidade e refletir sobre ela.
O currículo de
Arte da escola Oscar Novakoski prevê o trabalho com arte brasileira.
No 9º ano os alunos estudam a fotografia e sua história. A professora observou
que os alunos fotografavam frequentemente com seus celulares para veicular as
imagens nas redes sociais. Como conectar esse interesse pela fotografia e pela
imagem de si com um trabalho que possa tocar em questões relacionadas à
identidade e à realidade social local? Como olhar para o trabalho rural,
realizado pela grande maioria dos familiares desses alunos, que muitas vezes é
desconsiderado? Os alunos puderam experimentar um processo de criação na
linguagem fotográfica e encontraram uma via de expressão e descoberta da
riqueza do trabalho rural que, de algum modo, diz respeito a toda comunidade,
direta ou indiretamente.
A poética é um conceito
que está presente em diferentes propostas curriculares, no entanto, é
importante fazer considerações sobre como o contexto em que os projetos
acontecem imprimem marcas e dão diferentes nuances à ideia, levando em
consideração a realidade local. É possível identificar, também, como o contexto
em que os trabalhos se realizam é determinante e influencia nos planejamentos.
O projeto Olhar
poético criado pela professora Dora Lilia de Campos Sabor da E.M.E.F.
Marechal Deodoro da Fonseca, São Paulo, também abarca questões relativas ao
caráter poético da arte. Se a professora Vera, de Dois Córregos, provocou uma reflexão
sobre a identidade do grupo, Dora investiu na identidade singular e propôs que
cada aluno elaborasse um portfólio para organizar seu processo, tornando
visível a poética de cada estudante.
Olhar poético e poética
são coisas diferentes e facilmente confundíveis.
No primeiro projeto, os alunos experimentaram o olhar poético que favoreceu um
novo olhar para si e para o entorno; no segundo, cada aluno realizou um
conjunto de fotografias, e este conjunto revelou as poéticas individuais, as
linhas de pensamento de cada um.
4. As relações entre
processo e produto nos projetos de Arte
Quais as possíveis relações
entre processo e produto nos projetos de Arte? Essa é uma pergunta
fundamental quando pensamos no ensino de Arte. Retomando a ideia de que o valor
da arte não está no objeto, mas na relação que se estabelece com ele, como
vimos no primeiro capítulo deste artigo, esse deslocamento de valor reflete, também,
mudanças nas relações artista-obra.
Em diversos momentos da
história da arte o artista questionou sua posição de genialidade. Nos anos
1960/70 esses questionamentos passaram a ser o próprio tema da produção
artística e, embora esse posicionamento tenha sofrido transformações ao longo
dos anos, não há dúvida de que foram deixadas marcas que ainda estão presentes
nas obras de arte produzidas hoje.
Para romper com a separação
arte e vida, muitos artistas despiram seus trabalhos de molduras (no caso
da pintura) e bases (no caso das esculturas). Os objetos de arte passaram a
ocupar o mesmo lugar que as pessoas ocupam. Eles assim tornaram-se corpos.
Surgem novas possibilidades, como as ações e as performances - a ideia de obra
em processo. Em alguns casos, a obra apresenta uma incompletude, algo de
inacabado, que deixa abertura para uma ação, mesmo que mental, por parte do
público.
O que acontece é que,
mesmo quando estamos diante de uma obra, não é possível nos relacionarmos com
ela sem presentificar o processo. Toda obra de arte vista hoje traz impressa,
mesmo que só por indícios, um processo, uma incompletude, algo do fazer ou do
por fazer. Processo, portanto, passa a ser um conceito central.
Os projetos
didáticos de Arte, de um modo geral, caracterizam-se por apresentar um
produto final, definido e compartilhado junto à classe desde seu início. Essa é
uma condição fundamental que dá sentido ao processo de aprendizagem. No
entanto, se no campo da arte o produto está em xeque, é preciso refletir sobre
qual é o lugar do produto e do processo nos projetos de Arte na escola.
Demorei um tempo para
compreender o título do projeto de Rosely Novak, professora do Colégio
Renascença, de São Paulo: Um projeto em construsom. A cada nova
leitura, e conforme fui entendendo mais profundamente os processos da
professora e de aprendizagem dos alunos, pude perceber que esse título traz a
concepção de algo que não está pronto, que está em processo. Para a professora,
a experimentação e o processo são o eixo do trabalho.
Como ensinar música para
as crianças de hoje? Essa é uma questão que foi sendo respondida enquanto lia
seu trabalho. Rosely aponta que queria que os alunos brincassem, pelo menos no
início. Chama mais atenção como a professora observa e escuta as crianças. É um
trabalho contemporâneo. As crianças brincam hoje? Como brincam, com o que e com
quem? Que transformações aconteceram na música e como isso se reflete no seu
ensino? O brincar não é conteúdo e sim a consideração de que se está ensinando
música para crianças do 2º ano do Ensino Fundamental.
A professora dá
tratamento didático muito adequado aos conteúdos, respeita e dá espaço para o
movimento de cada grupo e de cada criança no grupo. Quando decide levar os
materiais aos poucos, demonstra controle sobre sua ação e favorece que os
alunos tenham autonomia para controlar as próprias ações. Conforme os
estudantes vão descobrindo as possibilidades rítmicas, a professora oferece
mais condições para que elas sejam exploradas e aprofundadas. As crianças
exploram, descobrem e criam durante todo o processo. Quando os alunos apontam
que querem construir instrumentos, ela os apoia, mas quando o movimento do
grupo aponta para instalações sonoras, esse caminho também se revela possível.
Todo o trabalho foi
registrado em vídeo e fotografia - material que foi apresentado aos pais em um
dia combinado. Vale ressaltar que as imagens dessa apresentação mostram as
crianças de uniforme (a roupa que usam no dia a dia), o espaço de apresentação
é o da sala de aula e os materiais são os mesmos utilizados ao longo do
processo. O que mudou? Os materiais viraram instrumentos ou instalações
sonoras, e em cada uma das quatro classes as crianças estavam organizadas de
acordo com a composição criada até aquele momento do processo, o que revela o
percurso de cada turma. Em todos os casos, a apresentação ganhou tratamento de
processo, davam a sensação de que poderiam continuar explorando e
experimentando, ou seja, ainda há coisas para serem descobertas ali.
O professor Adriano José
Pinheiro da EM Tirsi Anna Castellani Gamberini, na cidade de Mairiporã, a 41
quilômetros de São Paulo, desenvolveu junto a seus alunos o projetoImprovisação
e Dança. Nesse projeto também há a proposta de dar a mesma importância à
improvisação e à dança. Em uma das primeiras aulas, o professor, durante a roda
de conversa, perguntou aos alunos se a improvisação que fizeram poderia ser
considerada dança. E seus alunos responderam que não. As propostas das aulas
seguintes mudaram esta concepção.
É notável como o
professor trata o próprio cotidiano da aula como um ritual e uma coreografia.Processo
e produto aqui se equivalem. A cada aula, aquecimento, improvisação, roda
de conversa. A repetição aparece como estratégia de assimilação e memorização,
mas não de uma memorização mecânica, ao contrário, de uma memorização sensível
e carregada de sentido. Nas rodas de conversa não faltaram situações de
apreciação de importantes contribuições no campo da dança e da performance -
como Pina Bausch, Ballet Stagium e Yves Klein -, trazidos como referências para
que os alunos pudessem se alimentar de outras ideias.
Todas essas experiências
foram guardadas em uma caixa imaginária que, segundo o professor, não existia,
ela era a própria memória do corpo. Essa foi uma das estratégias utilizada para
valorizar e organizar os movimentos criados pelo grupo a partir de gestos
recortados das relações que podem estabelecer com objetos do cotidiano ou de
investigações de como o corpo pode ocupar os espaços. O silêncio foi uma
condição estabelecida desde o início do processo, e tanto o professor quanto os
alunos apontam que ele era necessário para que a linguagem do corpo pudesse
emergir.
Os movimentos foram
retomados a partir da consulta dos movimentos guardados na caixa imaginária e
dos registros fotográficos feitos pelo professor. Todo o processo foi
incorporado à coreografia apresentada aos pais e à comunidade escolar. O
professor Adriano comentou que a coreografia final era muito simples, o que
revela todo o processo de trabalho. Argumentou sobre a importância de trazer
essas ideias para compartilhar com a comunidade, uma mudança de cultura. Todos
os corpos podem se movimentar, ser expressivos e dançar.
5. A relação
arte-público no planejamento das atividades escolares
As transformações
na relação arte-público estão alinhadas ao deslocamento do valor da
arte deixar de estar no objeto para estar presente na relação que se estabelece
com a própria arte. As produções artísticas precisam ser ativadas pelo público,
que passa a ter um papel determinante no processo criador e, em alguns casos, a
sua participação é o próprio tema da obra.
Os reflexos desse outro
tipo de relação podem ser identificados quando vemos manifestações artísticas
acontecendo em espaços públicos - ruas, praças ou fachadas de prédios.
Espetáculos de dança podem acontecer fora do palco, no chão, com os dançarinos
entre o público. Apresentações de música na porta do metrô, intervenções
visuais em orelhões etc. Esses são alguns exemplos que evidenciam um corpo a
corpo público-obra como alternativa para romper com relações fetichistas e o
caráter de espetáculo que muitas vezes são atribuídos à arte.
A grande maioria dos
projetos de Arte na escola (e alguns de outras áreas e disciplinas) termina com
uma apresentação ou exposição. A intenção é compartilhar junto à comunidade o
que os alunos estudaram por um período. As finalizações guardam conexões
diretas com a ideia de produto final, mas também estão alinhadas com a relação
arte e público. A relação obra-público faz parte do sistema da arte.
O projeto Cartola na cartola, elaborado pelo
professor Alessandro de Oliveira Branco, na Escola Municipal de Tempo Integral
José Carlos Pimenta, no vilarejo de Vila Rica em Goiânia, levou-me a pensar
sobre as apresentações públicas a partir de uma nova perspectiva. Perguntei ao
professor como ele relaciona as apresentações com o processo de aprendizagem
dos alunos, afinal ele menciona que elas são uma alternativa cultural na
comunidade. Alessandro disse que as apresentações são regulares no vilarejo e
que a comunidade participa bastante. Apresentar-se é estímulo para que os
alunos continuem tocando e os iniciantes vislumbrem perspectivas em relação às
aprendizagens em música.
Os alunos se apresentam
em eventos culturais e na escola, uns para os outros - os mais experientes
tocam para os mais novos cantarem. Há um clima de ensaio nas apresentações, os
alunos aprendem a estabelecer outro tipo de relação com o público e a romper
com a tensão que é comum nas finalizações, de que tudo precisa dar certo.
Pode-se aprender com os erros.
O professor Alessandro
optou por fazer uma aproximação dos alunos com a música pelo fazer musical -
experimentar, ensaiar um repertório, apresentar-se, ouvir, apreciar músicas
variadas e tocar são ações tratadas como conteúdo. As apresentações atingiram
uma dimensão cultural, mas não se perde a dimensão de que esses meninos e
meninas são estudantes de música.
As transformações
constantes que podemos identificar na arte, por meio do estudo, da investigação
e do contato direto com ela implicam em reflexões acerca do ensino da Arte. E
isso não se restringe ao ensino de arte contemporânea. Vale para toda arte, de
qualquer tempo ou lugar. As aproximações arte-público revelam um caráter
educativo presentes nela mesma, indicando possibilidades de transposição
didática bastantes potentes.
Sobre a especialista
Marisa Szpigel é
Coordenadora de Arte da Escola da Vila, em São Paulo e selecionadora do Prêmio
Victor Civita Educador Nota 10.
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