O guarani Edgar* tem 19 anos e não estuda desde os 12, quando terminou a primeira etapa do Ensino Fundamental. Ele vive na aldeia Y’hovy, em Guaíra, a 642 quilômetros de Curitiba, e sua história ajuda a entender os problemas da exclusão escolar de crianças e jovens indígenas no Brasil. A área em que mora fica na fronteira com o Paraguai e ainda não está demarcada, razão pela qual a maioria das aldeias da região não conta com uma escola oficial. Para crianças e adolescentes sobra a opção de estudar nas escolas "de branco" localizadas dentro da cidade.
Surgem aí os primeiros entraves. O principal é a falta de documentos. Como nasceu do lado de lá da fronteira, Edgar* não possui certidão de nascimento brasileira e diz que, por isso, teve sua matrícula negada nos dois estabelecimentos de ensino em que tentou ingressar. Só entre os índios de até 10 anos no Brasil, mais de 30% não possuem qualquer registro civil, segundo o Censo Demográfico 2010. A ausência do documento não deve impedir o direito de aprender, mas por falta de informação a família do garoto não procurou outras instâncias e a Secretaria de Educação do Paraná diz não ter recebido denúncias a respeito.
Enquanto a situação não se resolve, a saga do jovem começa a ser repetida por outro Edgar* da mesma aldeia, que, além de homônimo, tem uma história semelhante à do amigo. Nascido no país vizinho, o adolescente de 15 anos está prestes a terminar o 5º ano e terá de mudar de escola. Porém, já diz ter ouvido que em outras instituições não há vagas para quem, como ele, não tem documentação. "Não quero parar de estudar, mas já disseram que eu não poderei mais", afirma.
O drama dos dois guaranis não existiria se as orientações para a Educação Indígena fossem seguidas à risca. Por lei, o ideal não seria eles irem para a escola comum, e sim terem acesso a uma instituição oficial na aldeia. O direito a um ensino diferenciado, específico, intercultural, bilíngue/ multilíngue e comunitário é garantido por lei e está descrito na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em normativas do Conselho Nacional de Educação (CNE) e no Plano Nacional de Educação (PNE) 2001- 2010.
Segundo Rita Potyguara, coordenadora-geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC), a criação de uma escola indígena independe da condição jurídica da terra. No entanto, de acordo com a Secretaria do Paraná, a questão fundiária é um grave obstáculo. Muitas aldeias de Guaíra estão em áreas de disputa judicial com os proprietários rurais da região, tornando as relações extremamente tensas.
A solução viável no curto prazo seria matricular essas crianças em escolas regulares e ofertar na aldeia, paralelamente, um ensino focado nas tradições próprias. "Na falta de Educação Indígena apropriada, eles deveriam ter assegurado o acesso à instituição de ensino regular e frequentar as aulas de conhecimentos e práticas indígenas no outro período, mas em quase todas as aldeias o ensino é improvisado", diz Henrique Gentil Oliveira, promotor do Ministério Público Federal do Paraná (MPF-PR). Na aldeia Y’hovy, essas aulas são dadas em uma cabana precária, de chão de terra e paredes feitas de ripas de madeira velhas. Ali, a professora Paulina Martines ensina elementos da cultura guarani, como a medicina, os valores, a língua materna avá guarani e o dialeto mbyá. Dos 32 estudantes atendidos por ela, apenas 15 frequentam também as escolas da cidade a que têm direito por lei.
Alunos guaranis aprendem danças indígenas na escola
Ismael Morel é professor de Educação Física na Escola Mbo'eroy Guarani/Kaiowa, aldeia de Amambai, sul de Mato Grosso do Sul. Em 2006, ele foi eleito Educador Nota 10 e recebeu o troféu do Prêmio Victor Civita por ter ensinado danças guaranis aos seus alunos - todos dessa mesma etnia. Sim, na aldeia de Ismael é preciso aprender na escola algo que, em tese, deveria fazer parte da tradição cultural. Por que isso acontece?
A resposta está no processo histórico pelo qual passaram todas as nações indígenas que aqui viviam antes da chegada dos europeus, há mais de 500 anos, e que tiveram contato com o chamado mundo civilizado. Os guaranis, em particular, eram nômades. Ocupavam extensas áreas de terra e estabeleciam suas aldeias ora num local, ora noutro, conforme as condições de subsistência. Eram um povo alegre e amistoso. Dançavam para comemorar, para batizar seus filhos suas sementes. Dançavam para reverenciar a natureza, dançavam nas cerimônias religiosas. Com os processos de catequização e escravização disparados no período colonial, essa cultura milenar e a sabedoria acumulada havia gerações foram sendo anuladas à força e à custa de milhares de mortes.
A situação dos sobreviventes de Amambai neste começo de século 21 é o resultado de uma degradação que parece não ter fim. O trabalho de Ismael merece destaque e reconhecimento porque tenta interromper esse curso tortuoso da trajetória de seu povo. Confinados numa área demarcada que garante pouco mais de 3,4 mil metros quadrados por indivíduo, os 7 mil indígenas que vivem na aldeia praticamente esqueceram a ideia do deslocamento nômade. Não há mais espaço para a caça e sobrou muito pouco da mata, o rio está poluído, alcoolismo e drogas penetram facilmente na comunidade. Missões religiosas marcadas por doutrinas cheias de impedimentos promovem uma neocatequese que solapa ainda mais a cultura guarani. Dançar, nem pensar. Para os que já abandonaram a tradição - quase metade da aldeia -, é pecado.
O grande peso social e cultural do trabalho de Ismael equilibra-se com sua função pedagógica. "A dança, na perspectiva curricular atual, é tema de Educação Física a ser explorado em toda a Educação Básica", afirma o professor Marcelo Barros da Silva, selecionador do Prêmio Victor Civita de 2006. Ismael, ao tratar desse conteúdo, teve a sacada de optar pela dança do próprio povo. O movimento que resulta das coreografias desenvolve a força, a agilidade e a percepção rítmica (e faz muito mais pela cultura guarani).
Nenhum comentário:
Postar um comentário